Encontrar a imensa palavra

<i>Armadilha</i>, de Rui Nunes

Domingos Lobo

A vi­agem, a úl­tima vi­agem? Há um ca­minho, a pés nus, que o olhar, mesmo a ca­minho de cegar, teima em per­correr com des­lum­brada an­gústia; obs­tina-se em so­le­trar essa luz es­quiva para re­a­prender a me­mória. Uma vi­agem que se faz ao mais subs­tan­tivo ter­ri­tório da me­mória, por dentro de um chão, ou sobre ele, na po­ro­si­dade das pa­la­vras que restam. Pa­la­vras de ar­re­messo, como fogo, como de­sis­tência, como fuga. Ir ao fundo, per­correr os ca­mi­nhos nessa agressão cons­tante de estar vivo e atento, e com os olhos a cegar, lenta, ine­xo­ra­vel­mente, a fi­carem mais in­ca­pazes para olhar e, olhando, re­velar o mundo, o que se aprendeu antes de es­gotar a luz, ou o ca­minho. Mas achar a pa­lavra, as pa­la­vras e essa eter­ni­dade que as funda, que nelas ha­bita mesmo a der­ruir, que com elas, so­le­trando, achamos: um sen­tido, mesmo que ab­surdo, uma pa­lavra que nos re­mete a algum chão, o da in­fância, ou do Ou­tono da vida, quando in­ces­sante, te­naz­mente bus­camos o sen­tido; o dos lu­gares em que as raízes sobem da terra e nos acossam, ou ou­tros que bus­camos al­gures no vasto mundo. Um sinal que nos iden­ti­fique, uma es­trada, um muro, uma pa­lavra, ou um nome para o oculto, forma de ven­cermos Deus, ou os deuses – os deuses que in­ven­tamos com pa­la­vras, ca­mi­nhando com elas, sobre fe­ridas e fogo. Cons­truímos deuses como cons­truímos casas, som­bras, abismos – com a mesma in­ge­nui­dade, as mesmas pa­la­vras que ar­re­mes­samos contra o si­lêncio, contra a cal dos muros. A so­lidão é um árido ter­ri­tório, tempo de re­gres­sarmos ao início das coisas, da qua­li­dade das coisas e os olhos, mesmo a cegar, trazem a in­qui­e­tude do real que lem­bramos, dos dias fe­lizes (?), e vem tão de sú­bito, tão ácido como o si­lêncio, que nos magoa: boca a pedir água, cama, qual­quer chão para o corpo. Chão re­co­nhe­cido desde a in­fância. Lon­jura de nós, Ou­tono será, trave a que já não che­gamos de tão alta, tão dis­tante desta re­a­li­dade que hoje somos, do corpo que ha­bi­tamos em rota de co­lisão com os sen­tidos: me­mória apenas, a in­fância, o jogo. Por isso usamos as pa­la­vras, para que a luz não se ex­tinga de vez, agora que a de Deus se apagou. Pa­la­vras ou pa­vios, forma de luz para os olhos que teimam em ver, em re­co­nhecer os ca­mi­nhos mesmo que os muros os tapem, os cer­quem de vi­dros, de arame far­pado. Como Álvaro de Campos pre­ci­samos es­calar os muros com o barro das pa­la­vras, sair do la­bi­rinto que er­guemos com as nossas ar­te­sa­nais forças, frá­geis mãos, la­bi­rinto que é o mundo, os nossos la­bi­rintos e pedir água, ou cama, ou sombra, uma arma, um Deus de feira: pre­ci­samos agitar o medo antes que a noite nos acosse e dentro dela, no es­curo, nem as pa­la­vras se acendam de tão gastas. Pro­cu­ramos a casa dos dias que jul­gá­vamos fe­lizes, a casa onde nos aco­lham como es­tran­geiro. A raiz é uma in­tensa vi­gi­lância, e tac­te­amos, in­qui­etos e frá­geis, tac­te­amos, em busca da pa­lavra exacta, mas Só as coisas mortas apa­zi­guam as pa­la­vras e A so­lidão é feita de re­gressos à me­mória, aos lu­gares da in­fância onde os lobos buscam a lim­pidez das fontes onde O In­verno mor­rerá com a chuva, a lama/​onde re­siste/​um ves­tígio de frio.

A Ar­ma­dilha, de Rui Nunes é isto: este redil entre a morte e as pa­la­vras, a me­mória e o aban­dono do pró­prio acto de es­quecer: de es­quecer os lu­gares, a luz que as pa­la­vras já não acendem e pe­re­grinar, abrir ca­mi­nhos sobre o lodo, com as pa­la­vras ar­re­mes­sadas contra o es­que­ci­mento – contra a ine­vi­tável so­lidão.

Temos, deste modo, um es­critor, um poeta, que se move com cla­rís­simo à-von­tade pelos ter­ri­tó­rios de uma es­crita que vem sus­ci­tando junto de al­guma crí­tica in­ter­ro­ga­ções e equí­vocos, per­ple­xi­dades, ade­sões e afas­ta­mentos. Não é um uni­verso de fácil aná­lise, de res­posta pronta às ques­tões her­me­nêu­ticas que essa es­crita per­ma­nen­te­mente co­loca, como os não serão os de Maria Velho da Costa, Maria Ga­briela Llansol, Hélia Cor­reia ou Ana Te­resa Pe­reira, es­te­jamos ou não em con­cor­dância com essas re­pre­sen­ta­ções e o modo de as trans­portar para a li­te­ra­tura, so­bre­tudo quando essa li­te­ra­tura é pe­ri­fé­rica e pre­cisa, para se afirmar, de alargar o seu es­paço de in­fluência.

O leitor é aqui con­vo­cado, nesse uni­verso em fuga, em ne­gação, la­bi­rín­tico, quase ir­real de Rui Nunes, para um per­ma­nente exer­cício de in­ter­ro­gação, de êx­tase in­ter­pre­ta­tivo pe­rante o caudal de pa­la­vras que res­soam as pa­redes do ser, no sen­tido berg­so­niano, dado que toda a aná­lise sobre um texto li­te­rário é es­pe­cu­la­tiva, sobre este ór­fico modo de in­ven­ta­ri­ação das pa­la­vras, a um tempo sin­gular, se­dutor e de com­plexa con­fi­gu­ração. Nada, por­tanto, de in­co­men­su­rável, que nos de­tenha na aná­lise de uma es­crita pro­fun­da­mente eli­dida nas suas do­lo­rosas res­so­nân­cias, mesmo quando es­quivas, que traz para a nossa li­te­ra­tura uma sin­taxe car­re­gada de pro­dí­gios e ema­na­ções, que inau­gura um modo outro de afir­mação da língua, nos con­flu­entes sim­bó­licos desses ter­ri­tó­rios fic­ci­o­nais, na sua pro­gressão e a lu­cidez in­ter­pre­ta­tiva de um mundo pes­soal e ao mesmo tempo pró­ximo das nossas per­ple­xi­dades, das an­gús­tias que trans­por­tamos e não sa­bemos, com as pa­la­vras de ar­tesão, de­finir com a cla­ri­vi­dência com que Rui Nunes, ex­pondo-se, o faz. A so­lidão, as som­bras, a iden­ti­dade, as fic­ções dentro da ficção, a aven­tura em curso sobre o do­mínio das pa­la­vras, da pa­lavra, os textos afins e a língua como iden­ti­dade e em função, em busca de uma de­ter­mi­nada ge­o­grafia –, ou, como Saus­sure afirma: To­mada no seu todo, a lin­guagem é mul­ti­forme e he­te­ró­clita; a ca­valo sobre vá­rios do­mí­nios, ao mesmo tempo fí­sica, fi­si­o­ló­gica e psí­quica, per­tence ainda ao do­mínio in­di­vi­dual e ao do­mínio so­cial; não se deixa clas­si­ficar em ne­nhuma ca­te­goria dos factos hu­manos, porque não se sabe como des­tacar a sua uni­dade.1

Ao lermos Ar­ma­dilha, de Rui Nunes, livro que en­cerra a tri­logia ini­ciada com A Mão do Oleiro (2011) e Barro (2012), sen­timos como que um murro sobre uma fe­rida ex­posta. Não é da ver­dade do­rida desta es­crita que temos medo; é do que nela de nós re­vela, que nos as­susta como um as­sombro ou uma re­ve­lação. E que­remos es­quecer, ou seja, guardar o livro, estes li­vros, e só re­gressar a ele quando dentro de nós essas con­fi­gu­ra­ções se aqui­e­tarem. Dado que nele, neste Ar­ma­dilha em par­ti­cular, há um tão forte re­gisto au­to­bi­o­grá­fico, uma tão ex­posta sin­ce­ri­dade – «O que es­crevo é uma imensa cla­ri­dade. Onde me torno um alvo», con­fessa o autor de Grito –, que pre­ci­samos de tempo para sorver a an­gústia que per­passa a lí­rica lu­cidez desta fala. Na es­crita de Rui Nunes, neste livro, há um mundo de pe­re­gri­na­ções, de busca, pela me­mória, a mais pró­xima e a lon­gínqua, que o poeta tenta res­gatar mas sabe que aos poucos vai per­dendo. Não na forma como no-lo des­venda esse uni­verso, mas na ca­pa­ci­dade de o con­ti­nuar a olhar do mesmo modo, a in­quirir, porque os seus ru­mores lhe chegam cada vez mais es­bo­ro­ados e té­nues.

Desde Grito, de 1997 (Grande Prémio de Ro­mance e No­vela da APE), que esta ma­triz es­sen­cial, a das pa­la­vras que nos acossam – A pa­lavra, hoje, mu­tila – se faz corpo de prosa e po­esia de sin­gular es­pes­sura, sempre nos li­mites da ime­diata com­pre­ensão dos signos que trans­porta. Rui Nunes é um raro des­critor das in­qui­e­ta­ções do homem con­tem­po­râneo, um ex­plo­rador sen­sível das suas res­so­nân­cias; de um tempo fe­chado num ca­sulo, numa caixa-forte – tempo que não se dá a ver, mas que o poeta, com o pro­dígio das pa­la­vras (mesmo quando gastas e im­pre­cisas) tenta de­so­cultar. Como a me­mória. Mesmo que para tanto não che­guem as pa­la­vras, os seus la­bi­rintos, o seu con­tínuo, dis­si­mu­lado exer­cício. A sua busca.

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1 Saus­sure, ci­tado por Ma­nuel Gusmão na obra Uma Razão Di­a­ló­gica, p.77 – Ed. Avante - 2011
Ar­ma­dilha, de Rui Nunes, Re­lógio d’Água/​2013

 

Nota: De­vido a um la­men­tável en­gano, o texto pu­bli­cado a se­mana pas­sada – uma so­bre­po­sição de dois textos – saiu trun­cado e in­com­pre­en­sível. Pelo facto pe­dimos des­culpa a Rui Nunes e aos nossos lei­tores.




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